05 maio, 2012

Diferenças

As percepções começam cedo e foi logo que eu descobri que o mundo era muito diferente de mim. Fui aprendendo aos poucos, indignado, que emprestar meus brinquedos era errado e que tirar a comida do meu prato pra dividir com meus primos não era muito inteligente. Abraçar meus amigos homens podia gerar comentários duvidosos e ficar com as meninas não era um bom sinal. Enfim...tudo tinha um julgamento.

Resolvi então ser igual a todo mundo, achando que assim ia me encontrar. Mas fazendo parte do geral só acabei me distanciando mais e mais das partes individuais que eu mais gostava em mim.

Me rebelei. Queria ser distinto em tudo, avesso se fosse possível. E o destaque que eu ganhei por ser díspar também não me nutriu. Então, esquecendo tudo que haviam me dito minha vida toda, eu aprendi que eu tinha que ser aquilo que ninguém nunca tinha conseguido me ensinar: o menino que emprestava os brinquedos e dividia os pratos de comida.

E foi só assim, me perdendo em atitudes que os outros desprezavam, que eu me encontrei. O mundo é que passou a ser diferente de mim e não eu diferente dele. Ou os dois, numa comunhão perversa desse universo onde os insuportáveis se toleram e convivem. 

Um universo onde ser diferente nem é tão importante assim. O importante é fazer a diferença.

05 setembro, 2010

Como se

Conheci uma pessoa que vende o corpo pra sobreviver. Ela se aproximou na esperança de conseguir um cliente; eu, na experança de conseguir um amigo. Agarramos no papo e descobri que ela morou num orfanato quando pequena, não conheceu a mãe (nem quero conhecer, adicionou). Não é de São Paulo e se vende pra pagar a diária do hotel, de 40 reais. O hotel não oferece nem café da manhã. Alguns dias não consegue programa. Na semana passada, dormiu 2 dias na rua.

O papo foi seguindo uma intimidade relâmpago foi se instalando. Sentados num sofá, abracei suas pernas (no início flexionadas, depois esticadas preguiçosamente sobre as minhas) e logo, agindo com um calor como se eu fosse alguém que ela conhecia há muito tempo, sua cabeça estava no meu colo, as pernas esticadas sobre o sofá.

Comecei a mexer no cabelo, de um corte um tanto incomum.

- Tá com sono?

- Não, não estou.

- Tá dormindo?

- Não.

Parei de mexer no cabelo.

- Não pare! Faça mais um pouco, só mais um pouco.

15min depois, ela dormiu.

Pensei que talvez ela não recebesse um cafuné há muito tempo. Pensei que ela nunca recebeu um cafuné da própria mãe e esse pensamento me deixou triste.

Fiz cafuné na prostituta por 1h30min.

Precisava ir, então a acordei. Os olhos abriram preguiçosos e me viram. Levantou, se aprumou, sem sequer olhar pra mim, fria como uma lâmina, como se eu fosse alguém que ela nunca tivesse visto na vida.

Me aprumei e não sabia bem como me despedir.

Pedi que ela me acompanhasse até a porta. Lá, parei e tirei do bolso algumas notas. 22, 24, 26 reais.

- Para que é isso?

- Para as despesas do hotel. Ou para o café da manhã.

Subi os olhos e vi dois pares de olhos marejados me olhando, um fio de calor e proximidade se esgueirando por trás do olhar.

- Eu...eu...

A fala não saiu. Talvez ela nunca tenha ganhado dinheiro sem ter que prestar serviço. Talvez nunca tenha visto um ato de generosidade.

- Não tem problema, respondi.

Meus braços formaram um abraço e a envolveram. Ela segurou me segurou, os braços envolveram meu corpo, mas ela não tinha me abraçado de volta.

Nos separamos e os olhos frios, duros, estavam lá de novo.

Ela pediu meu telefone. Eu dei.

Ela, com a certeza de que nunca ligaria. Eu, com a mesma certeza.

Cheguei em casa. Me senti culpado por tudo. Eu me preocupando em comprar video-games enquanto alguém tinha que vender o corpo pra não ficar na rua. Pensei em arrecadar roupas, sapatos. Não tinha como falar com ela, porque ela não tinha telefone.

Milhares de pensamentos, como se eu tivesse o poder de mudar o mundo.

Coloquei a cabeça no travesseiro e demorei a dormir. Rezei por ela, por mim, por todos nós.

Sonhei com ela. Eu a via na tv, concedendo uma entrevista sobre a grande empresa da qual era dona. No sonho ela era tão bonita quanto pessoalmente.

Admirei a beleza e a competência dela. Desliguei a tv e fui trabalhar, com uma sensação de paz.

Era como se nunca tivéssemos nos conhecido.

17 abril, 2010

Só para continuar

[...]

- Eles vão se casar, sim, com a minha benção. E serão felizes como eu fui.

- E certamente irão se separar, como você se separou.

- Mas eu só me separei pra continuar sendo feliz.

Viver a Vida, novela das oito, no ar pela Globo.

27 março, 2010

Os Nardoni e o Idiota

Não havia nenhuma prova física de que os Nardoni foram os responsáveis pela morte de Isabella. Havia indícios (muitos indícios, reconheço) que apontavam para isso. Mas nenhuma prova.

Entretanto, muitos por aí afirmam ter certeza absoluta da culpa do casal. “Eles têm cara de assassinos”, dizem, como se os matadores tivessem algum traço no rosto, uma cicatriz ou uma pinta que denunciasse suas intenções. Ou então afirmam que “eles não demonstram nenhum sentimento”, como se fosse fazer alguma diferença a dor estar estampada ou não no rosto.

A morte de Isabella Nardoni. Um fato jogado no ar e cada um acredita no que quer, com a intensidade que deseja.

E veja bem, não estou defendo o casal. Somente não tenho tanta certeza assim das coisas e não tenho a habilidade de reconhecer assassinos apenas olhando no rosto ou então analisando suas emoções, logo, prefiro ficar num terreno mais racional, de análise, de confrontação de informações, de perguntas.

Tá. Se eles foram os assassinos, por quê mataram? O que havia feito Isabella de tão ruim que bater nela e sufocá-la não foi suficiente? Por quê o trabalho de pendurá-la na janela e soltar? E se realmente havia outra pessoa no apartamento? E se a pessoa fez tudo o que fez em 3 minutos? Talvez um assassino profissional contratado por um inimigo de Nardoni, altamente pago para fazer o trabalho sujo, sem deixar vestígios.

Meio conspirativo? Também acho.

Enfim. Não gosto de acreditar logo de cara que pais espancam suas filhas e as jogam pela janela, sem motivo aparente. Eu sou assim meio idiota mesmo.

E que Deus me conserve um idiota até o fim dos meus dias. Porque como idiota, sou feliz.

24 março, 2010

Boa gente

Eu assisto Big Brother. Não sou fanático. Às vezes esqueço qual o dia da eliminação e se alguém me perguntar quando é a prova do líder ou a do anjo, eu não me lembro.

Mas me pergunte quem é o enganador, quem é a golpista, a inocente e a falsa e minha resposta está na ponta da língua. É o drama humano do programa que me atrai. A raiva, o que me motiva a assistir. E como cada um tem seus motivos pra fazer coisas vãs e inúteis, eu tenho meu motivo pra assistir BBB: vingança.

Eu assisto BBB pra satisfazer a minha vontade de meter a mão-na-cara no marido da amiga da minha tia, que terminou com ela na noite de natal, fez sexo com ela depois e ainda terminou dizendo: “a outra faz melhor”. Ou então pra cuspir minha indignação pela vizinha que tem um marido que lava, passa, cozinha e ainda o chama de escravinho.

Então quando cai a máscara da fofoqueira no programa, é o marido traste se dando mal por ter abandonado esposa e filho e quando a falsidade de uma participante é percebida ao vivo, é o marido exigindo não ser chamado de escravo. E a eliminação…é o cheque-mate, é a explosão, é o “bem feito, seu filho de uma égua”. Punição.

Eu tento corrigir o mundo através da tela.

Como se com isso eu pudesse trazer um pouco de humanidade às criaturas medíocres à minha volta ou talvez com o objetivo de absorver um pouco dessa humanidade e me destoar dessa gentalha, me sentindo gente. Boa gente.

Ultimamente tem sido um fracasso. Os maus se dão bem, os bons se afundam, as desventuras na tela longinqua tão próximas do real. Eu até entendo. A fofoqueira do programa é fofoqueira pra mim, mas é a heróina de outro. A minha verdade versus a verdade do outro. E aí todos votam e na eliminação prevalece a verdade da maioria, que não é a minha verdade, nem a verdade do outro: é uma terceira, díspar, pairando no ar.

E minha justiça? Minha punição? Nada. O marido deixa a esposa de novo, depois de transar com ela, na noite de natal, afirmando que o sexo é péssimo. O outro continua lavando e passando e cozinhando e ri do apelido de “escravinho”.

Eu sigo sentado, o pé numa tala, em frente à tela apagada.

Imóvel, impotente.

O mundo inteiro pra consertar.

12 novembro, 2009

Forte

O cachorro do meu irmão morreu.

Essa foi a notícia que recebi quando cheguei em casa, vindo do trabalho. Fiz algumas perguntas vagas, como se a minha displicência fosse me afastar de algum modo da consciência do fato. Foi em vão. Ficamos imersos na morte do cão.

Aí chegou o amigo do meu irmão, chamado exclusivamente para ajudar a carregar o cadáver do cachorro. Algumas introduções, algumas piadas, o convite. A resposta? "Desculpa, não vou por a mão nele não".

Meu irmão foi até a casa do cão com uma lâmpada, para ajudar a iluminar o local. Voltou logo. "Não vai dar, não vou conseguir, é muito triste" voltou ele dizendo, derrotado.

De repente, eu cansei. "Vamos lá então", disse eu. (Seja forte, seja forte...)

Na casa do cão, quando a luz quebrou a escuridao, lá estava ele. Era um Pit-bull, cara ameaçadora, dentes afiados, desconfiança plena de tudo e de todos. Mas já não era nada disso. Os olhos opacos eram meigos como nunca tinham sido em vida; as patas encolhidas, a boca aberta, os olhos apreciando infinitamente o asfalto.

(Seja forte, seja forte).

Dei um passo à frente. Me animei com a perspectiva de retirá-lo dali, como se fosse uma homenagem póstuma, uma aproximação, ao cão que por toda a vida tinha afastado todos de si. Cobri o cão com um lençol e a partir daí o incomodo melhorou. A dor diminuiu. Até agora não sei bem ao certo se fiz isso pra não ver o cão ou se o fiz para não ME ver no cão. Esse é o grande problema com a morte: há uma empatia involuntária.

Continuei sendo forte e comecei a movê-lo. Meu irmão saiu do choque e me ajudou. Pusemos um saco de lixo na cabeça, em direção ao rabo. E depois outro, no rabo em direção à cabeça, para selar o corpo. Olhei para o corpo. O cão no saco preto. Um dia todos seremos isso: uma massa rígida dentro de um saco preto.

Fui forte, comemorei. Fui forte. Ajudei meu irmão a levar o cão morto pra um veterinário, onde seria incinerado. Fui forte.

Cheguei em casa e fui logo dormir. Com a cabeça no travesseiro, me ocorreu que eu não havia fechado os olhos do cão. Sepultado de olhos abertos.

Seja forte, seja forte. Não consegui.

Lembrando de olhos eternamente abertos, o peso mórbido da morte me atingindo, fiquei com meus olhos abertos até tarde da noite.

Meu travesseiro ficou lavado de lágrimas.